sábado, 14 de fevereiro de 2009

As influências da religiosidade no caboclo pardo

As influências da religiosidade no caboclo
Os monges – Messianismo – Misticismo – Fanatismo – Catolicismo Rústico


Aqui, trataremos especificamente da forte influência da religiosidade no comportamento social do nosso povo no início do século XX, até quando da Guerra do Contestado (1913-1916).

Queremos que se faça justiça aos Homens do Contestado - nossa população - depois que se saiba mais sobre seus envolvimentos nos acontecimentos do passado, sobre suas idéias, razões e motivações, sobre seus comprometimentos e sua práxis na história e, ainda, que se alcance a compreensão dos seus gestos, atitudes e manifestações na busca de alimento espiritual e na procura de satisfação às suas necessidades sociais. Queremos trazer à luz novos argumentos para auxiliar a compreensão das manifestações da nossa gente, a partir das raízes do seu sentimento social e religioso, observados nas maneiras de pensar, sentir e agir dos habitantes da Região do Contestado.



5. 1 Religiosidade Popular no Contestado



Uma expressão muito usada na historiografia e nos compêndios religiosos é Religiosidade Popular, ou Religião do Povo. Podemos entendê-la a partir da análise do “catolicismo popular”. No Brasil, ainda no século passado, havia dois tipos de catolicismo: o urbano, chamado “renovado”, que aglutinava os habitantes das cidades (caracterizado como romano, clerical, tridentino, individual e sacramental) e o rural, chamado “tradicional”, que predominava fora das cidades (caracterizado como luso-brasileiro, leigo, medieval, social e familiar).

O catolicismo popular, (tradicional) em suas diferentes manifestações históricas, esteve sempre bastante próximo dos cultos africanos e ameríndios, gerando não poucas vezes expressões religiosas que podem ser consideradas como verdadeiro sincretismo religioso. A partir do século passado o culto popular católico sofreu também influência do espiritismo e do protestantismo. Deste modo, não é raro encontrar católicos que freqüentam a umbanda, o espiritismo ou assembléias protestantes (AZZI, 1978, p. 11).

O populismo católico chegou às terras brasileiras em meados deste século, quando a Igreja ainda estava aliada ao sistema de opressão, promovido pelas classes dominantes, com a catequese sendo usada como instrumento de dominação. A catequese “em vez de libertar, escraviza” (HOORNAERT, 1978, p. 123). A ordem ainda era no sentido de combater as formas de paganismo, superstição, ignorância, sortilégio e pacto com o demonio, da religiosidade popular, por influência da ortodoxia romana.

Na época do Contestado, o panorama histórico procura negar até mesmo o estado de homem ao sertanejo. Logo, a ‘práxis’ religiosa lhe garantia a possibilidade de construir sua própria identidade, que pela religiosidade popular, ele reproduzia conhecimentos antigos e recriava novos conhecimentos, capazes de dar sentido ao seu dia-a-dia (OLIVEIRA, 1991, p. 35).

Referindo-se à religiosidade expressa nos movimentos messiânicos de Canudos, Contestado e Caldeirão, FACÓ (1975, p. 42) explica que parece ser uma tendência natural das massas rurais espoliadas, em determinadas condições, criar uma religião própria, que lhe sirva de instrumento em sua luta pela libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários da época.

[...] a religiosidade popular, entendida enquanto uma concepção de mundo, é uma das possibilidades dos homens simples, ou seja, das classes subalternas. É oposta à religião oficial, pois esta forma de religião supõe uma ruptura com a hierarquia eclesiástica da Igreja Católica (CHAIA, 1981, p. 35).

Nesta religiosidade, o padre seria uma figura dispensável, já que o contato que se faz com Deus seria direto, sem a interferência dos sacerdotes, e que, neste sentido, o Espírito estaria no corpo dos homens, no grupo reunido. “[...] o que encontramos na religiosidade popular é uma série de crenças e de práticas religiosas que não se enquadram com a religião proposta pela hierarquia oficial da Igreja Católica” (CHAIA, 1981, p. 35). Este é também o pensamento de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), para quem, do ponto de vista religioso, “o povo brasileiro foi obrigado a se adaptar a duas condições fundamentais, desde os primeiros tempos da colonização: quantidade mínima de sacerdotes e falta de conhecimentos religiosos” (p. 75).

A chamada religiosidade popular e o chamado catolicismo rústico seriam então profanos em relação à religião oficial (Igreja Católica), só esta tida como sagrada (oficial). Isso nos remete à abordagem de alguns fundamentos históricos sobre religião.

O totemismo e o animismo influenciaram todas as religiões que surgiram depois, inclusive a Católica. Tanto se impregnaram nas religiões que, em alguns casos, até as superaram, como que dando uma imensa volta, vindo do passado distante e paralelamente a elas chegar aos nossos dias, alcançando a população do Contestado de menos cultura ou de quase nenhuma cultura. Os valores cristãos da Igreja do Século XIX, aqui, foram preteridos aos valores do Império Carolíngio do Século IX. A Igreja Católica conservadora da época da Guerra do Contestado, aqui representada por padres franciscanos oriundos da Alemanha, não aceitava isso.

A religiosidade popular na Região do Contestado é tida historicamente como sendo o “Catolicismo Rústico”, manifestado através das práticas mágico-religiosas ligadas ao tratamento de moléstias, a recursos de auto-defesa e proteção, e à tradição das festas dos padroeiros locais. Ele concorda que a história desta religião popular está ligada de forma definitiva aos feitos e às lendas de monges, beatos rezadores e curadores itinerantes:

Em contraste com o padre - porta-voz de uma instituição estranha - que, saindo de sua sede paroquial, situada numa vila ou cidade, também percorria o sertão, o ‘monge’ vivia no sertão. [...]. Ao contrário do padre, porém, esses estranhos se deixavam assimilar. Conquanto vivessem uma vida apartada e cultivassem hábitos mais ou menos ascéticos, passavam a fazer parte integrante da vida social sertaneja, como se fossem uma florescência natural da religião católica rústica. Representava o ‘monge’ um papel equivalente ao do padre, mas estava a serviço e era a expressão da autonomia do religioso rústico (MONTEIRO, 1974, p. 81).

A Igreja Católica mantinha paróquias nas únicas poucas cidades catarinenses existentes no Contestado no início do século, em Lages, Curitibanos, Campos Novos e Canoinhas e, nas cidades paranaenses de União da Vitória, Rio Negro e Palmas, com um mínimo de padres atendendo os fiéis em demoradas viagens pelos sertões. Neste quadro de distanciamento entre a hierarquia católica e o rebanho cristão, despontaram na região pessoas “diferentes”, peregrinas e eremitas, algumas consideradas “monges” pela população regional por se exercitarem como pregadoras e curandeiras, outras delas, profetas, visionárias, charlatães ou fanáticas. Em algumas localidades do Planalto Catarinense, entre os caboclos, existiam ainda os “rezadores”, pessoas que se ocupavam das atividades e manifestações religiosas populares nas grandes fazendas.

Persiste no tempo presente, na Região do Contestado, a herança cultural da referência a João Maria como “santo” e a ele ainda hoje a população de maior idade se refere ao “São” João Maria. Isso para o caboclo era sagrado, mas para a Igreja era uma heresia. Na atualidade, observamos que sacerdotes e bispos mais pacientes e progressistas até que toleram a menção, pois ela faz parte do folclore regional. Da tradição de João Maria, o que muito se observa é o respeito. Esta é a palavra-chave para definirmos a veneração ao “santo”. A par de outros santos canonizados pela Igreja, é ao “São João Maria” a quem muitas pessoas recorrem em momentos de aflição. Na sua religiosidade popular, o Homem do Contestado Primitivo defendia a santidade do monge mesmo sem tê-lo conhecido e considerava hereges aqueles que pensarem profaná-lo.

Como adjetivo, entre outras aplicações, o termo “São” é usado pela Igreja Católica, empregado quando os nomes dos santos a que se junta começam por consoantes: São Pedro, São Paulo, etc., pois que, quando os nomes começam com vogal, usa o termo “Santo”, por exemplo: Santo Antonio, Santo Agostinho, etc. Por sua vez, o adjetivo “santo” tem várias aplicações, empregando-se não apenas às pessoas canonizadas pela Igreja, como também, por exemplo, a locais: cemitério (campo santo), igrejas (templos santos) ou a momentos: celebração eucarística (santa missa). No caso da referência a João Maria como santo, fica o entendimento de que o termo se aplica a quem está puro, isento de imperfeições, que não tem culpas, que pode servir de modelo religioso, às pessoas virtuosas, respeitáveis, que vivem de acordo com a lei de Deus, aos bondosos, aos que inspiram benevolência e compaixão, a quem é digno de respeito e veneração pelas suas virtudes, e a tudo aquilo que é digno de respeito, que não pode ser violado sem que se cometa uma espécie de profanação.

A figura de “São João Maria” passou a integrar o rol dos santos mais venerados pelos caboclos da região, inclusive sendo invocado nas ladainhas pelos “puxadores de reza”, ao lado de São Sebastião (o guerreiro espetado de flechas), de São João dos Pobres (o pobre pastor), de São Gonçalo (o padroeiro dos violeiros), de São Benedito (o homem de cor), do Anjo Custódio (da adaga inflamada), de São João Batista, entre outros.

Observamos que, dentro do período do nosso estudo, não foram poucas as manifestações dos representantes da Igreja Católica no Sul do Brasil, contra alguns costumes e tradições das pessoas mais simples, considerados profanos para a sagrada religião. Existem muitas discussões a respeito dos termos “sagrado” e “profano”. São dois termos que têm grande riqueza de significados e precisam ser entendidos conforme suas aplicações, caso a caso. Por uma inferência legítima, “[...] é-se levado a afirmar que ‘profano’ e ‘sagrado’ distinguem-se, não como categorias antiéticas, gêneros opostos, mas como gêneros diversos" (MONTEIRO, 1974, p. 173). Assim, dependendo do ponto-de-vista, não necessariamente as palavras conflitam entre si ou têm sentidos antagônicos.

Coinforme a Igreja Católica, por sagrado, é tudo aquilo que recebe a consagração, o caráter de santidade por meio de cerimônia religiosa; também, as pessoas que inspiram ou devem inspirar veneração profunda e respeito religioso e, ainda, o lugar privilegiado, vedado a profanações. Um símbolo cristão, uma cruz, por exemplo, passa à condição de “sagrada” ao ser benta por um sacerdote. Um templo, uma capela, são locais sagrados desde que a Igreja os consagre. A celebração eucarística é um ato sagrado para o catolicismo. O padre é um homem sagrado, porque é consagrado à missão do sacerdócio. Um velório ou um sepultamento são momentos sagrados porque exigem respeito.

Ainda conforme a Igreja Católica, por profano, tem-se tudo aquilo que é estranho à religião, contrário à “verdadeira” religião, herético; também pessoas não iniciadas em certos conhecimentos, em maneiras de pensar, sentir e agir. Vem do verbo “profanar”, que significa tratar com irreverência ou sem respeito, ou injuriar, ofender, manchar e macular. Os monges e profetas daqui seriam, então, profanos por não estarem dentro da Igreja, por serem hereges. Os “quadros-santos”, implantados pelos caboclos nos acampamentos (redutos) durante a Guerra do Contestado, seriam profanos, da mesma forma como os ritos que neles se praticavam. As cruzes plantadas por João Maria seriam profanas, por não terem sido consagradas pela Igreja. Poderiam ser consideradas profanas as pregações dos monges por não terem eles autorização da Igreja para evangelizar. Esta era a visão da Igreja, da aristocracia, até recentemente.

Mas, contrariando a Igreja, para o povo simples, heresia seria chamar de profanos os seus monges, evangelizadores e profetas, como José Maria, bem como a herança cultural que legaram, esta por ele considerada sagrada. Nossa gente, assim, sem antagonismos, acolheu como sagrados, tanto os símbolos da Igreja, como aqueles que ela mesma elegeu.

Não devemos esquecer o duplo sentido da interpretação dos dois termos. Um “pouso” de São João Maria, um “ôlho d’água”, um “cruzeiro de cedro” ou uma árvore, considerados sagrados para o povo, por força da magia, podem ser profanos para a Igreja e para quem neles não crêem, mas isso não significa que aí existe oposição. Para os católicos, ouvir os monges pregar o Evangelho seria um ato de profanidade. Antigamente, profano servia para designar apenas o que estava fora de recinto consagrado, mas não necessariamente em oposição ao sagrado, pois poderia vir a sê-lo posteriormente, se e quando acolhido pela Igreja.

Em diversos “pousos” de São João Maria (locais onde este monge repousava), espalhados pela Região do Contestado, são deixados os “ex-votos” de pessoas que se disseram curadas ou tiveram graças alcançadas, como velas, muletas, peças de vestuário, próteses, etc. Os “ex-votos” são os testemunhos públicos das graças alcançadas e, ao mesmo tempo, das promessas cumpridas. Explicando que esta tradição no Brasil nos vem desde o período colonial .

Posta claramente, no cotidiano, a dissensão entre o mundo oficial e o dos caboclos acelera entre estes, o processo de articulação de sua própria visão de mundo acompanhado, como não poderia deixar de ser, do fim das ambigüidades até então admitidas, como é o caso das "associações morais" (sistema de compadrio) entre caboclos e "coronéis" e o caso das relações de identidade entre o catolicismo erudito de frei Rogério e o catolicismo popular dos monges.

Ao articular sua visão de mundo, o caboclo desarticula o que corresponde à normalidade vigente no mundo oficial da República Velha, o mundo dos "coronéis", do padre, das companhias Brazil Railway e Brazil Lumber e dos soldados.

A religiosidade popular do Contestado dirigiu a ação dos sertanejos em sua rejeição à realidade opressora. Esta ação, por sua vez, implicou na necessidade de se repensar seguidamente a própria representação religiosa, conferindo-lhe novas explicações, de modo a possibilitar a continuidade e a coesão do movimento rebelde, acentuada limitação do nível de saber vigente, frente à presença de profundas transformações históricas, promoveu a elasticidade do discurso religioso, que a tudo explicou e a tudo deu sentido. Esse discurso religioso representou para os caboclos, ao mesmo tempo e contraditoriamente, uma limitação e uma possibilidade. Foi a resposta concreta aos problemas vividos por eles (AURAS, 1997, p. 154-155).

No final do século XIX as instituições povo & Igreja estavam longe um do outro, na Região do Contestado. Em 1891, Lages contava com apenas um padre - Antônio Luiz Esteves de Carvalho - que faleceu em outubro deste ano, quando o Bispo do Rio de Janeiro confiou a paróquia lageana aos franciscanos, chegando por primeiro Frei Amando Bahlmann e, em seguida, Frei Herculano Limpinsel, mais os irmãos leigos Frei Mariano e Frei Maurício Schmalohr, seguidos, em fevereiro de 1892, por Frei Rogério Neuhaus.

A Guerra do Contestado também foi uma “guerra santa” à moda cabocla e, à medida em que acirrou ânimos, revelou o “fanatismo”. Fanático é aquele que se considera inspirado por uma divindade, iluminado por ela, é o exaltado, o faccioso, o entusiasmado. Nossos sertanejos foram então chamados de "fanáticos", termo que se empregou também para referenciar os líderes de outros movimentos messiânicos, mas eles não assim se consideravam: chamavam-se de “irmãos”. Foi a aristocracia quem deu ao termo “fanático” uma conotação altamente pejorativa, aqui vinculada à de jagunço, bandoleiro e bandido .

O fanatismo, sem dúvida, foi um dos ingredientes que caracterizaram as manifestações de parte dos caboclos - não de todos - durante o conflito, sendo observado nos sertanejos e camponeses que aderiram cegamente à então nova ordem milenarista, no choque aberto entre a religiosidade popular e a religião da Igreja dominante, a Católica.

O fenômeno messiânico aconteceu quase sempre fora da Igreja constituída, e não raras vezes contra ela. “É verdade que, em grande parte, esses movimentos pecaram por fanatismo, utopia e pressa, enguetamento, e mentalidade demais marcada pelos mitos e magias” (BROD, 1974, p. 22).

O fanatismo no Contestado havia revelado “uma drástica separação entre a ideologia das classes dominantes e camadas médias urbanas e a ideologia dos setores empobrecidos da população rural” (FACÓ, 1978, p. 41). O caboclo do tempo da Guerra do Contestado praticava uma religião típica a partir da sua ideologia:

No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar de ‘fanatismo’. Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: ‘fanáticos’. Quer dizer, adeptos de uma seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante. Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada pela religião católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia (FACÓ, 1978, p. 39-40).




5. 2 Movimento Messiânico



Como se observa, há referências explícitas sobre “movimento messiânico” ou “guerra dos fanáticos”, quando o conflito social da Guerra do Contestado é visto com mais ênfase pelo lado religioso.

Por messianismo, entende-se a crença religiosa da vinda de um ‘redentor’, que altera a ordem das coisas para haver mais justiça entre os homens. A ‘vinda do Messias’ é uma crença que acompanha os povos há séculos. Tendo em Jesus Cristo o ‘Messias-Libertador’, as igrejas cristãs são messiânicas em Cristo. Entretanto, outros movimentos, fora das Igrejas e, ao longos dos anos, caracterizam-se como messiânicos por constituírem processos de libertação de grupos sociais localizados, em momentos de desequilíbrio social e manifestados em situações de opressões, em meio à miséria e à ignorância.

Para que um movimento se caracterize como ‘messiânico’, deve conter as propostas básicas da crença popular da volta do Messias, ou a vinda de um representante seu, a fim de proporcionar à sociedade a tão almejada paz e a esperada justiça social, e deve se materializar num grupo formado ao redor de um líder carismático, que apresenta as propostas ao povo. Os movimentos messiânicos são tão velhos quanto a própria humanidade:

A História Humana é perpassada por uma dupla corrente de luta pela modificação das condições de vida dos Homens. Uma corrente chamada ‘prometéica’ tem suas raízes no mito de Prometeu, o homem que ousou invadir a mansão dos deuses para roubar a autonomia dos humanos, conquistar o fogo sagrado. Esta corrente é aquela que é assumida pelos movimentos ditos de revolução social. Não espera um salvador, mas acha que os próprios homens, sem esperar por deuses, têm que assumir seu destino. E a outra corrente, é a messiânica, que espera a solução dos problemas humanos a partir de um Messias, um salvador. Alguém enviado por forças superiores para dar cabo da injustiça e da exploração de que são vítimas os homens. Uma solução quase sempre extra-terrena ou promovida por um ser dotado de qualidades supra-humanas (SOUZA, in O Contestado, jun. 1977).

O movimento do Contestado se enquadra nos tipos de movimentos religiosos que têm sido chamados de “messiânicos” , ao lado do de Canudos, Juazeiro, dos “Muckers” e outros similares. Seu conceito tem sido usado entre nós numa acepção por vezes bastante imprecisa.

Messianismo é todo aquele movimento em que um número maior ou menor de pessoas, em estado de grande exaltação emotiva, provocada pelas tensões sociais, se reúnem no culto a um indivíduo considerado portador de poderes sobrenaturais, e se mantêm reunidas na esperança mística de que serão salvas de uma catástrofe universal e (ou) ingressarão ainda em vida num mundo paradisíaco: a terra sem males, o reino dos céus, a cidade ideal... (QUEIROZ, 1981, p. 25l).

A palavra messianismo indica o anseio de um povo, movido por um líder para achar a Terra da Promissão, país onde reina a paz e a prosperidade. “Os movimentos messiânicos registram-se especialmente entre os nativos dos países colonizados; eles serviram como um meio, uma alavanca, para obter a liberdade” (PIETERS, 1981, p. 2). Esta crença foi o impulso dos “fanáticos” para enfrentar tudo e todos com coragem durante o sangrento conflito.

Este impulso chama-se ‘messianismo’ e revela uma das características da alma do nosso homem do campo. O nosso caboclo é essencialmente um místico e sonhador, que vai atrás do paraiso perdido, de um Eldorado nunca atingido. Queremos ver mais de perto este sentimento nobre e perigoso, que vive em certas pessoas, mais declarado numas do que em outras, que é no fundo um elemento positivo, caso seja bem dirigido, mas que mostra uma face horrorosa quando está sendo explorado por homens sem alma (PIETERS, in O Contestado, mar. 1978).

A maioria dos movimentos messiânicos no Brasil encontrou raízes na herança cultural portuguesa, na crença religiosa do “Sebastianismo” . Foi assim também no Contestado. “Tão enraizado era o espírito messiânico em Portugal, que Lord Tirawley, embaixador inglês, escreveu que a metade da população de Lisboa era de cristãos-novos esperando o messias, e a outra parte era de portugueses que estavam esperando a volta de Dom Sebastião” (PIETERS, in O Contestado, mar. 1978). Pela sua interpretação, temos que nem todos os movimentos messiânicos são sebastianistas e que todos os movimentos sebastianistas são messiânicos . Foi o “messianismo-sebastianista” que se propagou pelo Sul do Brasil, trazido pelos vincentistas na ocupação do solo meridional, como crença religiosa das camadas mais pobres da população, baseada em profecias que alimentavam suas esperanças por melhores condições de vida.

São Sebastião sempre recebeu profunda devoção dos caboclos da Região do Contestado, até porque se vincula à idéia de “guerra santa”. Esta idéia aristocrática no cristianismo apareceu quando a Igreja começou a conviver com os poderes constituídos, para a conversão dos infiéis ou gentios por uma “guerra de missão” e foi cristalizada no tempo do papa Gregório Magno pela transformação das imagens dos santos guerreiros. Os primeiros santos (da tradição ocidental) foram: São Jorge, São Martinho, São Maurício, São Miguel e São Sebastião, todos inicialmente só santos, apesar de terem sido guerreiros, mas depois santos-guerreiros, ou santos-militares, assim tidos simultaneamente como soldados de Cristo e soldados da Cristandade.

Uma bem feita imagem de São Sebastião acompanhou constante e permanentemente os sublevados do Contestado, do primeiro ao último acampamento. Conduzida na linha-de-frente, chegou a ser danificada por tiros disparados pelos militares. Depois foi objeto de saque, levada embora, mas acabou voltando ao lugar onde estava antes da Guerra do Contestado: na capela do então Distrito de São Sebastião da Boa Vista, Município de Curitibanos (hoje Distrito de São Sebastião, Município de Lebon Régis). Curiosamente, mesmo levantando a estátua do São Sebastião santo-guerreiro, o sebastianismo no Contestado direcionou-se em função de Dom Sebastião messias-libertador. Quando os sertanejos organizaram suas forças para combater os militares, criaram aquele que denominaram “Exército Encantado de São Sebastião”, lembrando o “príncipe encantado, o libertador, o santo que voltaria”. Incorporaram a idéia messiânica e também o chamavam de “Exército de São João Maria” ou “de José Maria”, preparado para a guerra santa.



5. 3 Fascínio Misterioso das Forças Mágicas



Para entender melhor a religiosidade popular no Contestado, precisamos vinculá-la também à presença da crença religiosa que admite comunicações ocultas entre os homens e a divindade: é o “misticismo”, ideologia que trata da disposição do homem em admitir e crer no sobrenatural, presente em todos os povos, presente, pois, na Região do Contestado .

Estudando a religiosidade da população do Contestado no século passado e bem no início deste, observamos que, pelas suas práticas, o caboclo era um ser místico em toda sua potencialidade. Os processos de aculturação envolvendo o branco, o índio e o negro, com o passar dos anos criaram na figura do caboclo, fruto desta mescla toda, sentimentos religiosos próprios, que não necessariamente mais se identificavam com os das três raças formadoras isoladamente, que se interligavam e interpenetravam, mostrando novas características, bem peculiares. Do índio, o cristianismo do europeu recebeu influência do animismo e, do negro, o feiticismo, fazendo florescer uma espiritualidade cristã católica com boa dose de crenças profanas, que passou de geração em geração.

Os cristãos portugueses trouxeram ao Brasil, já impregnadas em suas almas, uma série de crendices, temores e superstições, adquiridos no tempo da Idade Média, quando a magia sobrepujava a ciência. O índio, nativo brasileiro que aqui estava, contribuiu com sua cultura animista, para quem animais e plantas representavam símbolos de cultos e os fenômenos mais simples da natureza eram expressões que lhe causavam terror. O negro africano, em menor escala de representatividade aqui, trouxe suas feitiçarias, seus rituais de macumba e suas lendas. Cada um passou para os outros parte da sua cultura, incluindo crenças, crendices e superstições, que fomentaram o misticismo na nossa gente.

Durante o tempo histórico que elegemos para este estudo, no final do século passado e no início deste, à população que chamamos “cabocla” incorporaram-se outros povos das correntes imigratórias da Europa para o sul do Brasil, entrando no Território do Contestado novas culturas, como castelhana, alemã, polonesa, ucraniana, árabe e italiana, todas estas com suas particulares crendices e superstições . Já “crendices” são crenças populares, absurdas, sem nenhum fundamento. “Superstições” são expressões religiosas fundadas em crendices; é o sentimento de veneração religiosa com base no temor ou na ignorância, que nos conduz ao cumprimento de quimeras ou à confiança em coisas ineficazes. Quando o homem acredita nelas, revela-se místico.

Em toda nossa gente desta época, encontramos explicações para seus modos de pensar, sentir e agir também em outra religião antiga, que igualmente influenciou bastante o pensamento popular: o “Animismo”. Esta é a religião primitiva que coloca em toda a natureza espíritos mais ou menos análogos ao espírito do homem. Antes, ao animismo dizia-se “Fetichismo”. Fetiche vem de feitiço, palavra que dá uma certa “força mágica” às coisas encantadas ou feiticeiras. Para o animismo, existem dois tipos de magia: a boa, também chamada de magia branca, praticada por sacerdotes ou feiticeiros; e a má, praticada pelos bruxos, em rituais de magia-negra.

Etimologicamente, magia significa a ciência dos magos ou da casta sacerdotal persa. É a arte ou técnica de produzir efeitos e afastar maléficos pela manipulação de forças ocultas ou seres preter-naturais. [...] Instrumentos de magia são encantamentos, os exorcismos, os filtros, os talismãs, por meio dos quais o mago se comunica com as forças naturais ou celestiais ou infernais e as persuade a lhe obedecerem, muitas vezes de forma violenta (ZILLES, 1997, p. 239-40).

Segundo o animismo, na mentalidade primitiva, a alma está estritamente ligada ao corpo. A alma é princípio da vida. A morte sobrevém quando a alma abandona o corpo. Mas, o espírito do homem permanece ligado ao seu cadáver. Seus adeptos admitem que pode acontecer que os mortos reencarnem ou desapareçam definitivamente.É no animismo que está a raiz da explicação da crença na “ressurreição” dos “monges”. Na Guerra do Contestado, por exemplo, muitos sertanejos fanatizados, mostravam que não tinham medo de morrer: ao receber um tiro, estariam “passando” para um outro lugar, no seu imaginário. Este outro lugar seria o ponto de encontro com José Maria. As disposições humanas têm seu lugar entre as forças espirituais. Elas se exteriorizam e contribuem para determinar acontecimentos felizes ou infelizes, bons ou ruins.

Na teoria fetichista, os espíritos são forças místicas que podem ser invocadas para o homem exercer poderes sobre a natureza e agir sobre seres espirituais; é a “magia”. A magia é invocada para as mais diversas finalidades, inclusive para a bruxaria, quando é utilizada a participação existente entre a pessoa e a sua imagem, como, por exemplo, para matar alguém poder-se-ia fazê-lo destruindo uma reprodução da imagem desta pessoa.

É da magia que nos vem o entendimento que certos objetos (amuletos, talismãs, etc.) têm poderes mágicos para produzir felicidade ou afastar desgraças. Quantas pessoas não usam objetos em correntes penduradas no pescoço, não para enfeite, mas para proteção? Os caboclos do Contestado usavam os patuás, cordões com objetos mágicos que acreditavam defendê-los de todos os males, até da morte. Identificamos o animismo quando João Maria recorria à sua magia ao abençoar as fontes de água, tornando-as “curativas”.



5. 4 Reflexos da Gesta Carolíngia



Para quem não está familiarizado com estudos históricos, a expressão “Gesta Carolíngia” pode parecer estranha. “Gesta” significa feitos guerreiros, façanhas, acontecimentos históricos ou celebração de grandes realizações. “Carolíngio” é a atribuição ao pertencente ou relativo à dinastia de Carlos Magno, o Rei dos Francos e Imperador do Ocidente (768-814). “Gesta Carolíngia”, portanto, significa as grandes façanhas guerreiras do Imperador Carlos Magno . E Carlos Magno tem tudo a ver com o Contestado, fato histórico ainda que dele distante mais de um milênio.

Era difundida no Contestado a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, seguida de Bernardo Del Cárpio que venceu em Batalha aos Doze Pares de França, de autoria de Alexandre Caetano Gomes, traduzida para o português por Jeronymo Moreira de Carvalho, obra composta por duas partes e nove livros, editada pela Livraria Garnier, do Rio do Janeiro, no século XIX. E havia outra, Histórias do Imperador Carlos Magno ou os Doze Pares de França, editada pela Livrarias Império, também do Rio de Janeiro.

O Tenente Herculano Teixeira d’Assumpção, que participou da Guerra do Contestado, expôs sua percepção de ser esta literatura “comum” nos lares da Região do Contestado:

Esses nossos patrícios que, sob o império do malfazejo obscurantismo, procuravam, grosseiramente, praticar a onirocricia, têm desusado temos aos espíritos maus – talvez o Aguian dos nossos supersticiosos oborigenes ou alguns novos gênios dirigidos pela figura mythica de Ophineo. Além disso, são incorrigíveis admiradores das lendas a respeito do grande filho de Pepino – o Breve, o heróico Carlos Magno, rei dos Francos e imperador do Occidente. Em geral, em todos os lares, desde os mais fartos aos mais necessitados, é commum a existência do conhecido livro phantasioso “A Historia de Carlos Magno ou os Doze Pares de França” – e isso também fal-os propender para as aventuras (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 210-211).

À imprensa, a influência de Carlos Magno no Monge José Maria, em 1912, também não passou despercebida: “José Maria fez da história do famoso rei a sua bíblia. Que teria nesse livro que tanto impressionou o espírito grosseiro desse caboclo? Qual seria a façanha que o levou a fazer desse livro o seu evangelho?” (Diário da Tarde, 1 nov. 1912). Esta influência, presente também dois anos depois, novamente é observada pelos correspondentes dos jornais:

Acreditamos que a leitura demasiada do pândego Carlos Magno, que existe em profusão pelas casas sertanejas, ocasionou o desequilíbrio dessa pobre gente, que no dizer de Euclides da Cunha, está atrazada de 400 anos em civilização. As estórias cavalheirescas dos Roldão e Gui de Borgonha, pares do grande Imperador, fizeram virar a cabeça dos já não mui equilibrados José Maria, velha Querubina e outros pobres diabos” [...] “Eram os 12 pares de França, isto é, 24 combatentes dos mais fortes e mais fanatizados acompanhados de outros, infelizes victimas das artimanhas do tal Eusébio (Folha do Comércio, 26 mar. 1914).

A ignorância dessa gente é absoluta. A maioria não sabe contar além de cem! Raro é o que sabe ler e deste o livro predileto é uma maravilhosa Historia de Carlos Magno que entusiasma e alucina o seu espirito primitivo com aventuras extraordinárias de heróis invenciveis, homens que sozinhos atacam e derrotam exércitos aguerridos. E o caboclo acredita piamente nas façanhas de Roldão, e admira maravilhado a bravura cavalheirosa de Oliveiros (O Paraná, 21 fev. 1914).

Alfredo de Oliveira Lemos, descrevendo a participação de líderes rebeldes na Guerra do Contestado, da qual foi testemunha ocular, destaca em suas remiscências, por exemplo, sobre eles:

[...] Elias todos os dias mandava o povo formar, e gritando viva a monarquia, São Sebastião e José Maria. Elias tinha uma esperança ou uma fé que quando estivessem em forma, dando vivas, aparecia o exército de São Sebastião, e que ali vinha a monarquia”. [...] Alonso de Souza: “Foi organizado os pares de França; eram 24 homens armados de espada”. [...] Adeodato Manoel Ramos: “tendo sido nomeado comandante dos pares de França... (LEMOS, 1989, p. 46-48).

Era certo que José Maria levava consigo a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França e nas horas de folga fazia a leitura de capítulos aos que o seguiam. Em estudo que abrange o país inteiro, mas, em particular o Nordeste, notou-se acertadamente que esse livro, foi, até poucos anos, o mais conhecido pelo povo brasileiro do interior.

Nos sertões do Contestado, àquela época, era comum a existência, mesmo longe das vilas, de uma velha edição dessa história. Um repórter observou que entre os sertanejos alfabetizados ‘o livro predileto é uma maravilhosa História de Carlos Magno que entusiasma e alucina o seu espírito primitivo com aventuras extraordinárias de heróis invencíveis, homens que sozinhos atacam e derrotam exércitos aguerridos’ (jornal Pa. 21-1-1914). Ignora-se de que maneira José Maria comentava as façanhas dos cavaleiros da Távola Redonda, mas – como irão confirmar os episódios subseqüentes – essa literatura que exaltava a coragem pessoal, a luta contra os “infiéis” e a fraternidade entre os campeões, marcaria, diretamente os acontecimentos (QUEIROZ, 1981, p. 82-83).

Durante o movimento messiânico do Contestado, encontramos três fases distintas de inspiração nas histórias de Carlos Magno para a formação dos Doze Pares de França caboclos:

- A primeira, em 1912, quando o Monge José Maria estava acampado em Taquaruçu e ali, para ele, os caboclos formaram uma guarda de honra de 24 cavaleiros. Esta guarda acompanhou-o até o Irani, em outubro deste ano.

José Maria permaneceu pouco mais de um mês em Taquaruçu. Dirigia terços, receitava narrativas sacras e contava histórias de Carlos Magno. Naturalmente, continuava receitando. Já em Campos Novos parece que ele havia organizado um séquito de 25 apóstolos. Agora, em Taquaruçu, promoveu uma guarda de honra, composta de 24 homens e mais o comandante, com a denominação de Doze Pares de França, todos montados em cavalos brancos. É possível que tenha se inspirado não apenas no livro de Carlos Magno, como na organização das cavalhadas, em que os cristãos em sua luta figurada contra os mouros, costumavam ser denominados pares de França (QUEIROZ, 1981, p. 85).

- A segunda, um ano após o Combate do Irani, de curta duração, verificou-se entre o final de 1913 e o início de 1914, quando os caboclos, identificados como fanáticos, agora consideravam "Pares de França" os seus principais líderes, que integravam o grande Conselho de Comandantes, criado para organizar a defesa de Taquaruçu e a retirada para o Norte. Quando o menino-vidente Joaquim assumiu o comando espiritual dos caboclos da cidade-santa de Taquaruçu e os fanáticos mobilizaram-se para organizar o reduto de Caraguatá, suas lideranças assumiram papel igual ao dos pares (inspetores) de Carlos Magno. “[...] evidentemente, esse conselho dos 12 pares é constituído por aqueles fanáticos que são intermediários entre o vidente Joaquim e a totalidade dos crentes” (QUEIROZ, 1981, p. 125). Alguns destes "novos" Pares de França eram os mesmos do agrupamento anterior.

- A terceira fase, mais demorada, que iniciou na segunda metade de 1914 e se estendeu até agosto de 1916, foi observada quando foram constituídos mais de um grupo de Pares de França, distribuídos em vários piquetes de elite do Exército Encantado de São Sebastião, com homens escolhidos entre os mais experimentados na arte da guerra, os mais valentes e destemidos. Aqui, “[...] teve influência também a reinterpretação da História de Carlos Magno, cujos "reis", "nobres" e "fidalgos" eram considerados modelos de coragem, fraternidade e devoção a uma causa” (QUEIROZ, 1981, p. 141). Nesta etapa, os Pares de França não eram mais os membros do Conselho de Comandantes, pois cada conselheiro recebeu a incumbência de comandar um grupo de Doze Pares. Foi o caso, por exemplo, de Adeodato, que, além de membro do Conselho, passou a ser também comandante de piquete de Doze Pares de França.

Os caboclos colocaram o mundo das lendas de Carlos Magno e dos Doze Pares de França como reminiscência, que atenderia às suas expectativas de uma irmandade moderna ideal. Os tempos da dinastia carolíngia teriam sido um referencial.

A incorporação da lenda de Carlos Magno no universo ideológico da irmandade significou a busca de um nexo entre um presente intolerável e um passado percebido como a ordem justa e boa. As angústias concretas não se reduziam, desse modo, ao presente vivido, não apareciam como experiências singulares de privação, sofrimento e opressão, mas adquiriam o estatuto de um corte dentro de um tempo grandioso, tensão e crise de passagem entre uma ordem pretérita que degenerou e a construção de uma ordem sagrada. Desse ponto de vista, a instituição dos Doze Pares de França, a leitura pública da gesta carolíngia e a utilização do "tempo da guerra de Carlos magno" como referente cronológico, ganham um sentido mais profundo (MONTEIRO, 1974, p. 119).

Na Guerra do Contestado, o Exército Encantado de São Sebastião destacava seus caboclos mais valentes nos piquetes de cavalaria, organizados como “Doze Pares de França”, assim copiando um modelo que surgiu na História como “cavalaria avançada”, com cavaleiros escolhidos entre os melhores nas “cavalhadas”, um torneio muito comum na região (até hoje) que, em dias de festa, dividia os cavaleiros em cristãos e mouros, lembrando os tempos medievais, quando simulavam jogos e lutas, com lanças e espadas.

As cavalhadas são presenças constantes na maioria das grandes comemorações brasileiras, sejam elas cívicas ou religiosas. Apesar de diversas vezes não haver a representação explícita de um rei, em muitas cavalhadas os cavaleiros se dizem os “pares de França do imperador Carlos Magno”. Estranho caminho que faz da história uma grande metáfora (SCHWARCZ, 1998, p. 273).

Eram 12 os cavaleiros de Carlos Magno, mas 24 deles formavam um bloco no exército caboclo, pela interpretação matemática que 12 pares totalizam 24 integrantes. Guerreando nas linhas de frente, seus feitos viraram mitos em toda a região. Se a adoção do modelo dos Pares de França, por si só, atesta a influência da gesta carolíngia no imaginário dos nossos caboclos, temos, ainda, outras representações simbólicas que reforçam a tese da interação entre o modo de pensar, sentir e de agir dos "fanáticos" do Contestado e as lendas sobre Carlos Magno, associadas ao sebastianismo, destacando-se, entre estas representações: a utilização preferencial da arma branca (facas, facões e espadas) pelos combatentes; a preferência pelos combates corpo-a-corpo contra os militares, a exemplo do que se fazia nas antigas guerras; o uso de amuletos (patuás), com orações que protegiam os santificados apóstolos-caboclos das agressões dos infiéis; a adoção da bandeira branca com a cruz verde, símbolo do Exército Encantado de São Sebastião; o modelo de irmandade que orientava a formação dos redutos, onde tudo era de todos, a defesa da honra, mais a lealdade e o amor aos companheiros, paralelamente aos sentimentos de repulsa aos infiéis e ao desejo de vingança pelas agressões; a idéia de uma monarquia orientada por uma ordem divina, para a instauração de um mundo novo, marcado pela justiça social; a decisão pela deflagração da guerra santa, iniciada no inverno de 1914 e conduzida como forma de guerra de conquista; e o respeito ao cristianismo, pela manutenção de um catolicismo rústico, mas modificado pelos valores de uma nova santa religião.

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